“Se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão oprimidas e amar as pessoas que estão oprimindo”. Malcon X
Ao longo do ano de 2012 vimos uma série de matérias na grande imprensa, televisionada ou não, que mostraram de uma forma muito difusa, ações de governos estaduais sobre grupos de usuários de crack. Descobrimos com um misto de pena e pavor as cracolândias. Observamos e até apoiamos estas ações. Não vimos seus bastidores, ou melhor, a TV nos mostrou muito pouco e discutiu menos ainda, dificultando nossa compreensão sobre esta dura realidade social. Paralisados em nosso medo, desejamos apenas que “alguém” resolva (ou remova) este problema.
Lorene Figueiredo*
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Sobre o crack, a internação compulsória e a importância social deste debate
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Pronto! Foi aberta a temporada de caça e repressão aos usuários de crack. Mas muitas polêmicas e contradições estão encobertas pelo espetáculo midiático e convém por puro bom senso, desconfiar das saídas fáceis. Da famosa “porta larga”. Assim sendo, proponho, pelos limites deste texto, breves reflexões sobre o tema e sugiro alguns instrumentos alternativos de informação para aprofundamento.
A questão do crack em si.
Há uma enorme espetacularização do uso do crack que não guarda relação com a realidade do uso desta droga. Pesquisas recentes demonstram que o uso do crack existe concomitantemente ao de outras drogas ilícitas e que seu registro remonta aos anos 80. Além disso, não é possível homogeneizar e nem padronizar uma avaliação do uso e do comércio de drogas lícitas e ilícitas dada a diversidade social e histórica do país. O vício em álcool é de 74% e de tabaco 44%, além de ansiolíticos 5,6%, de maconha 8,8% e de cocaína 2,9%, sendo de crack 0,7% o dos entrevistados nas pesquisas que cito com indicação ao final do texto. O uso da expressão “epidemia” como vem sendo feito, amplia o estigma e a discriminação social, pois além de todos os preconceitos que esta população sofre, ainda é rotulada como portadora de uma doença contagiosa e letal (comparo ao que era feito com portadores de hanseníase até bem pouco tempo). Segundo pesquisadores da UFRJ o crack é mais popular e mais barato porque o custo de produção é menor, mas sua composição é basicamente cocaína. Esta no início do século XX era usada pela elite em festinhas privê enquanto a maconha era droga “de pobre”.
Enxergando para além do preconceito.
Em primeiro lugar a cracolândia não é o que parece. Os pesquisadores e os assistentes sociais que trabalham com população de rua identificam que as condições degradantes de vida estavam presentes para esta população antes do advento do crack. Ou seja, a pobreza extrema, o desemprego, a falta de moradia digna, a sarjeta, a fome, as doenças infectocontagiosas, o estigma social, a precariedade da vida em toda a sua magnitude já estavam presentes. O crack chega como droga estimulante, antidepressiva, redutora do apetite e que mantém o ser humano acordado por mais tempo, o que é uma vantagem dada a vulnerabilidade na qual se encontram como população de rua. Ele substituiu como droga de preferência outras que eram utilizadas contra a dor física e moral produzida pela miséria.
A cracolândia, segundo os próprios pesquisadores e os usuários entrevistados, é um espaço de convivência cuja proximidade é a condição de usuário. Alguns ainda possuem casa e família e quando “surtam” vão para estes locais, ficam alguns dias e retornam para suas casas. A maior parte são pessoas para as quais a sociedade não tem nenhuma resposta, não tem nenhuma perspectiva ou projeto de vida e de realização. Isso sim é um drama terrível e nos coloca, juntamente com os governos que elegemos, na berlinda. O que temos a oferecer para uma multidão de jovens, na sua maior parte entre os 18 e 25 anos usuários de crack como possibilidade de realização pessoal e coletiva?
Em segundo lugar o crack não é a droga mais letal. Segundo as mesmas pesquisas o que mais mata esta população de usuários é justo a condição de vida degradante que acarreta a vulnerabilidade e permite a instalação de doenças oportunistas. Quanto aos equipamentos públicos de saúde e assistência ou são desconhecidos ou não estão abertos à estas pessoas. É muito comum o relato de preconceito social pela condição de morador de rua e também o entrave burocrático como a comprovação de endereço, apresentação de documentos etc.
Em terceiro lugar o que os governos vêm promovendo com a presença ostensiva da polícia e a internação compulsória é a repressão, a criminalização, o aviltamento da condição humana de quem já está em condição vulnerável. Apresenta como solução um trabalho de “limpeza” dos centros urbanos como se deslocar a população usuária fosse solucionar as questões mais profundas já apontadas. Trata-se de uma política higienista e elitista e não de um projeto de política pública e humanizador. Então, o que está por trás da questão?
Arriscando algumas hipóteses.
O governo federal decidiu criar um programa nacional de combate ao crack, como uma cruzada salvacionista, que liberou recursos da ordem de 4 bilhões de reais. Diante de escassos recursos destinados a saúde, as prefeituras começaram a declarar ter problemas graves com o crack. Há uma discussão inflacionada sobre este tema. A área urbana ocupada pelo crack em espaços de “revitalização” dos grandes centros urbanos coloca esta frágil população na linha de frente da especulação imobiliária e financeira diante do “bota abaixo do século XXI” que tem como “mote” os megaeventos.
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A origem de nossa elite é o tráfico negreiro e o latifúndio escravista, uma origem violenta e sanguinária. As polícias militares nascem para garantir os interesses desta mesma elite. Qualquer política que utilize como linha de frente a polícia militar estará marcada pelas funções repressivas que a constitui. Historicamente a população pobre do país sempre foi estigmatizada. Inicialmente o escravo fugitivo era o elemento perigoso, depois o capoeira, o homem negro pobre, o usuário de crack. As populações de periferia são todas tratadas como se fossem criminosos a priori. Não há meios de pensar políticas públicas inclusivas e que obtenham êxito a partir destes pressupostos.
O crack expõe o fracasso de todos os projetos de desenvolvimento e inclusão. É um espelho incômodo no qual temos que observar cotidianamente nosso fracasso como civilização. Neste contexto reflito e apresento como hipótese que vivemos uma cultura do medo e da punição cujo objetivo é nos isolar e nos impedir de enxergar os limites evidentes que as estratégias de valorização de capital colocam para as possibilidades de realização da vida em sua plenitude.
A “cruzada salvadora” contra o crack esconde a indiferença com as condições de vida e de trabalho da população pobre, as extremas condições de exploração do trabalho que existem hoje (a despeito das taxas de desemprego em queda, estamos falando de qualidade de vida e de trabalho); esconde a violência das expropriações em decorrência da especulação imobiliária e dos megaeventos (como no recente episódio do Pinheirinho que a mídia divulgou se tratar de uma cracolândia e não de um bairro de gente trabalhadora construído em um espaço de ocupação urbana); esconde a falência dos sistemas públicos de saúde e sua privatização, gerando o caos que observamos hoje; esconde o perverso mecanismo de controle social que a “desculpa” de reprimir o trafico do crack permite: avançar sobre a população pobre, contendo e impedindo que se manifestem pela insatisfação com suas condições de vida e de trabalho. Juntamente com os usuários de crack, todos os pobres estão sendo criminalizados.
A quem serve todo este estado de coisas?
O preconceito sempre foi a arma mais poderosa nas mãos da classe empresarial, dominante, para dividir, enfraquecer e dominar a classe trabalhadora. O preconceito racial, o machismo, a homofobia e agora o estigma sobre os usuários de drogas permite a dominação na medida em que nos impede de enxergar o que estas pessoas assim “classificadas” têm em comum: sua condição de explorados no trabalho e na vida, usurpados da oportunidade de viver experiências concretas de expansão de sua humanidade e de vida em comunhão. O que o debate sobre o crack nos permite é refletir sobre a miséria social. A miséria que é viver acreditando que a exclusão de milhares de seres humanos, trabalhadores ativos ou desempregados, das condições básicas de vida é natural. Quando algo sai do controle não podemos acreditar que a solução seja reprimi-los e obrigá-los a se internar sem criar uma rede de apoio, sem mudar as condições reais de sua existência. Isso não nos levará a uma sociedade melhor.
v A pesquisa à qual me refiro é de André Antunes e está parcialmente publicada na Revista da Poli – FIOCRUZ- nº 22. Há versão on line; artigo “Crack desinformação e sensacionalismo”. Para saber mais: Agência Carta Maior – www.cartamaior.com.br; Revista Caros Amigos _ várias edições; Revista Forum _ várias edições; Revista da ADUSP – todas as edições on line; Site : www.apublica.org; Blog : Observar e absorver; Núcleo Piratininga de Comunicação – NPC; Blog : DocVerdade.blogspot – vários documentários; Blog: outras palavras – várias postagens sobre o tema; Site : diariodocentrodomundo.com.br; No youtube buscar vídeo : Domínio Público; e também The Shock Doutrine by Naomi Klein; Sites dos Núcleos de Estudos da Violência vinculados às Universidades Federais e Estaduais do país.
* Professora da Universidade Federal Fluminense nas áreas da Economia Política da Educação e da Política Educacional. Doutoranda em Politica Pública e Formação. Mestre em Educação na linha de pesquisa Trabalho e Educação pela Universidade Federal Fluminense, Licenciada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Sabedoria
Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente. (William Shakespeare)
Uma alegria tumultuosa anuncia uma felicidade medíocre e breve. (Plutarco)
Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber a sua simplicidade. (Mário Quintana)
A vida é feita de escolhas. Quando você dá um passo à frente, inevitavelmente alguma coisa fica para trás. (Caio Fernando de Abreu)
Voltar atrás é melhor que perder-se no caminho. (Ditado russo)
Não há arauto mais perfeito da alegria do que o silêncio. (William Shakespeare